Participação de itens como baterias, carros elétricos e painéis fotovoltaicos mais que quadruplica desde a pandemia.
Por Marta Watanabe e Álvaro Fagundes — De São Paulo ( Valor Econômico)
A parcela de produtos mais relacionados à transição energética ganhou espaço nas importações brasileiras made in China. As compras externas de carros elétricos e híbridos, painéis solares e outros equipamento solares e fotovoltaicos e baterias de íon de lítio vindos do país asiático somaram US$ 4,96 bilhões de janeiro a agosto de 2024, o que significa 12,2% da importação origem China.
No ano passado foram 9,6%. No pré-pandemia, em 2019, essa fatia era de 2,7%. Esses produtos “verdes” vindos da China representam 2,9% dos desembarques totais brasileiros neste ano. Em 2019 foram 0,5%, sempre considerando os mesmos oito meses.
O aumento dos itens verdes na pauta de importação de produtos chineses contribuiu para o avanço da China na importação total brasileira. De janeiro a agosto 23,4% de todas as compras externas brasileiras vieram da China. No ano passado foram 21,4%. Em 2019, 19,3%, sempre nos oito meses.
Os dados são da Secretaria de Comércio Exterior (Secex/Mdic). Dos três itens verdes, a importação de carros elétricos e híbridos chineses foi a de maior valor, com US$ 2,77 bilhões desembarcados no Brasil de janeiro a agosto deste ano. Painéis solares e outros equipamentos fotovoltaicos alcançaram US$ 1,86 bilhão. Baterias de íon de lítio somaram valor bem mais baixo, de US$ 337,2 milhões.
“China está exportando muito desses itens para o Brasil, mas está exportando muito para todos os lugares” — Livio Ribeiro
Nesses itens verdes, o Brasil ocupa lugar importante no mapa da exportação chinesa. Pelos dados mais recentes da Administração Geral da Alfândega da China, o Brasil é, de janeiro a julho, o quinto maior destino no conjunto dos veículos elétricos/híbridos, painéis solares e baterias de íon de lítio. Na exportação geral da China, o Brasil fica em 16º lugar.
O movimento de embarques chineses no rumo da transição energética é amplo. Segundo os dados do governo chinês, os telefones celulares ainda são, disparados, o produto mais vendido pelo país asiático ao mundo, seguidos por “artigos de baixo valor”, com procedimentos alfandegários simplificados, e notebooks. Mas baterias de íon de lítio estão na quinta posição, enquanto veículos elétricos vêm em sétimo lugar, e painéis solares, em oitavo.
Juntos, os três itens da transição energética somaram US$ 70,9 bilhões em exportações da China de janeiro a julho deste ano. Com menor venda externa, os veículos sedan chamados híbridos plug-in, com motor a combustão e elétrico e que podem ser recarregados na tomada, estão em 86º lugar no ranking de exportações chinesas para o mundo e somaram US$ 3,31 bilhões de janeiro a julho.
Para Livio Ribeiro, sócio da BRCG e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), o fenômeno que impacta as importações brasileiras está dentro de uma estratégia global chinesa que vem desde meados da década de 2010. Naquela época o debate da transição energética ainda não havia tomado corpo, mas os planos estratégicos de médio e longo prazos da China incorporavam, em um dos seus pilares, três pontos bem marcados, diz. “Um, aumentar o valor adicionado dos produtos chineses exportados. Dois, subir o valor e a participação chinesa no que eles chamavam de setores de ponta. E três, subir a participação chinesa nos setores ligados à eletrificação. Isso é uma política de Estado que está maturada hoje ou em vias de perfeita maturação.”
Com o lançamento dos planos “China 2025” e “China 2030” por Xi Jinping, presidente da China desde 2013, essa política fica “escrita em pedra”, diz Ribeiro. “A China vira o ofertante marginal desses produtos no mundo, o que vale para veículos elétricos, painéis solares e baterias de íon de lítio. Ela está exportando muito desses itens para o Brasil, sim, mas na verdade ela está exportando muito desses produtos para todos os lugares.” Ofertante marginal é aquele que é capaz de elevar a oferta de determinado produto para atender um aumento de demanda.
Tulio Cariello, diretor de conteúdo e pesquisa do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), lembra que tanto nos painéis solares e nos carros elétricos e híbridos, a China conseguiu aproveitar janelas de oportunidade para entrar no mercado brasileiro em períodos em que a demanda cresceu em contexto conjuntural e regulatório mais favorável. A importação de painéis solares cresceu principalmente desde 2021, quando a bandeira da escassez hídrica tornou a conta de luz mais salgada. Na época, um tratamento tarifário mais favorável concedido à energia solar, que beneficiou acessos à rede elétrica solicitados até o início de 2023, também ajudou as importações. O desembarque de painéis solares e outros itens fotovoltaicos alcançou US$ 3,4 bilhões em 2022. Em 2024 o valor caiu para US$ 1,64 bilhões, mas se mantém representativo em relação aos US$ 496 milhões de 2019, com dados sempre de janeiro a agosto.
Já a importação de automóveis elétricos e híbridos começou a despertar atenção no segundo semestre de 2023, quando o imposto de importação para esses carros estava zerado. Ao fim do ano passado, o governo anunciou a retomada da tarifa de importação para esses veículos. Desde janeiro o desembarque de carros elétricos e híbridos está sujeito ao imposto de importação no Brasil. Para carros puramente elétricos, por exemplo, a alíquota inicial de 10% valeu até fim de junho. Desde julho são 18%. Pelo cronograma estabelecido pelo governo a cobrança chegará a 35% a partir de julho de 2026. Híbridos seguem agenda de gradação de alíquotas diferente, mas o imposto chega a 35% no mesmo prazo. O cronograma provocou uma “explosão” na importação de carros chineses no primeiro semestre de 2024, explica Cariello, na corrida para aproveitar o imposto de importação mais baixo.
“O mercado interno chinês não cresce o suficiente para abarcar a produção doméstica, por isso os produtos são exportados” — José Augusto de Castro
O fenômeno da importação de produtos ligados à transição energética, diz Ribeiro, é também parte de um “processo de desova de excesso de capacidade chinês”. “Ainda que o Brasil não seja um competidor direto nesses produtos, e nunca será, isso mexe com alguns setores específicos e por isso o Brasil acaba colocando limites à entrada desses produtos chineses”, diz Ribeiro, exemplificando com os automóveis.
Mas a mudança de contexto tarifário não quer dizer que a participação importante de produtos aliados à transição energética na importação brasileira origem China ficará definitivamente para trás, diz Cariello. Outros produtos, como a bateria de íon de lítio, avalia, têm potencial para avançar nos desembarques brasileiros, à medida que houver produção de carros elétricos no país.
Ribeiro também vê possibilidade para o crescimento das baterias. Para ele, o potencial está nos mercados de telefonia móvel, já que os celulares usam bateria de íon de lítio, e também no armazenamento de energia eólica e solar, que têm se expandido no país. As duas fontes já representam mais de 22,4% da matriz energética brasileira, segundo dados da Aneel referentes ao primeiro semestre de 2024.
José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), diz que os produtos chineses encontram facilidade para entrar no mercado brasileiro em razão de preços baixos. “O mercado interno chinês não cresce o suficiente para abarcar a produção doméstica na China e por isso os produtos são exportados. E hoje os órgãos reguladores do comércio multilateral perderam força para atuar nisso.”
Os diversos países, quando querem evitar a importação de produtos chineses, já não esperam mais medidas da Organização Mundial do Comércio e adotam mecanismos próprios de defesa comercial para proteger sua produção doméstica, observa Castro. “Isso faz com que países como o Brasil se tornem um destino cada vez maior das exportações chinesas. No caso do Brasil, que quase não tem produção doméstica desses itens, é muitas vezes mais fácil importar do que fabricar internamente.”
Segundo dados da Secex, a China forneceu 99,4% do que o Brasil importou em painéis solares e dispositivos fotovoltaicos de janeiro a agosto deste ano. Nos carros elétricos e híbridos, a fatia chinesa foi de 73,2% e nas baterias de íon de lítio, 80,7%.
“Os países desenvolvidos passaram a fazer oposição aos produtos chineses porque ficou claro que não somente são bens de alto valor adicionado e de ponta, como também são itens que fazem parte de uma estratégia global que podemos chamar de ‘going green’”, avalia Ribeiro. “A China se coloca como um líder desse processo e realmente ela chega na frente dos outros em termos não só de custo, como também de qualidade, algo que é bem relevante.”
Os países mais competitivos se incomodam e começam a colocar salvaguardas ou elevar alíquotas, observa Ribeiro. “Mas a China tem um estoque de produção estúpido para painéis solares, baterias de íon de lítio e veículos elétricos”, diz. A China, que é líder na produção global de carros elétricos, tem mais de cem marcas de automóveis, exemplifica o economista.