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Fluxo de exportação bate recorde no 1º semestre apesar do déficit comercial industrial

Posted on 10/09/2024

Marta Watanabe (Valor, 13/08/24) informa: na primeira metade de 2024, o balanço comercial brasileira teve o segundo maior superávit da série histórica, mas o déficit da balança da indústria de transformação alcançou os US$ 28,4 bilhões, o mais alto da última década para o período em dólares correntes.

Os produtos do setor de automóveis, incluindo reboques e carrocerias, acumularam nos mesmos seis meses déficit US$ 6,57 bilhões, mais que o triplo dos US$ 1,94 bilhão de iguais meses de 2023 e valor recorde para o primeiro semestre. Os maiores déficits da balança da indústria de transformação na série história para o período de janeiro a junho ainda são os de 2013 e 2014, quando os saldos negativos ultrapassaram os US$ 34 bilhões.

De janeiro a junho de 2024, o déficit se aprofundou em 25,7% frente iguais meses de 2023. Os dados do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi) mostram que três dos quatro grupos da indústria de transformação classificados segundo a intensidade tecnológica pioraram seu saldo comercial. A exceção foi o grupo de menor intensidade tecnológica, de média-baixa tecnologia, cuja atividade se aproxima das atividades extrativas e agropecuárias, destaca Rafael Cagnin, economista-chefe do Iedi. Nesse grupo o superávit comercial saltou para US$ 62,54 bilhões no primeiro semestre de 2024, ante US$ 40,59 bilhões em iguais meses de 2023.

Para o economista, a tendência é que o déficit comercial da indústria de transformação encerre 2024 de forma acentuada, ainda que a perspectiva de estabilização da taxa básica de juros possa desestimular importações. Os dados do IEDI mostram que nos ramos de maior intensidade tecnológica – alta e média-alta – a deterioração do saldo comercial no primeiro semestre de 2024 veio pelo encolhimento das exportações e ampliação das importações.

Trata-se de um quadro, diz o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil, que torna as exportações brasileiras cada vez mais dependentes de produtos mais básicos, com saldos que dependem das cotações de commodities.

Cagnin ressalta o comportamento dos segmentos de média intensidade tecnológica No agregado da indústria de transformação, explica, esse grupo costuma amortecer o déficit estrutural dos ramos de alta e média-alta tecnologia. “Essa capacidade de amortecimento perdeu fôlego na primeira metade deste ano.”

No primeiro semestre de 2024 o grupo de média tecnologia fechou com superávit de US$ 1,99 bilhão, valor bem abaixo do saldo positivo de US$ 5,71 bilhões de igual período de 2023, uma queda de 65,1%. Desde meados de 2022, aponta o relatório do Iedi, o superávit deste grupo cai a taxas de dois dígitos, com intensificação em 2024. De janeiro a junho deste ano as exportações dos ramos de média tecnologia caíram 17,6% e as importações avançaram 8,1% contra igual período de 2023.

A evolução da média tecnologia, explica Cagnin, é influenciada principalmente por borracha e plástico, com ampliação de déficit, e sobretudo forte queda do superávit da metalurgia, ramo que inclui a indústria siderúrgica, que desde a pandemia sofre pressão da concorrência chinesa. “É importante lembrar que a deterioração de saldo vem num contexto de redução de preços globais, algo que amortece os movimentos”, diz.

Na alta e na média-alta tecnologia a ampliação de déficit de janeiro a junho se acelerou no segundo trimestre do ano. No primeiro trimestre, o déficit comercial avançou 3,2% e 4,5%, respectivamente, com aceleração para 12,2% e 23,1%, sempre na comparação com igual período de 2023.

Na alta tecnologia, os setores farmacêuticos e de aeronaves foram determinantes para a evolução. Na média-alta tecnologia, a indústria automobilística explica 90% da deterioração do saldo, aponta relatório do Iedi. “São faixas nas quais há penetração importante de insumos e também de produtos acabados.” A faixa de média-alta tecnologia fechou o primeiro semestre com déficit de US$ 36,4 bilhões, ante saldo negativa de US$ 31,9 bilhões de iguais meses de 2023. Os embarques desse grupo caíram 11,3%, enquanto as importações avançaram 4,1%.

Welber Barral, sócio da BMJ, diz que apesar de o déficits em alguns grupos terem sido impulsionadas por fatores conjunturais, como o maior fluxo de desembarque de automóveis elétricos e híbridos, em razão da elevação do imposto de importação, fatores estruturais também tiram a competitividade da exportação da indústria.

Pelos dados do Iedi, além do aumento do déficit no ramo de automóveis, reboques e carrocerias, também houve no grupo de média-alta tecnologia ampliação de saldo negativo em máquinas e equipamentos, ramo cujas exportações caíram 11% e as importações cresceram 9,1%. Sempre de janeiro a junho de 2024 contra igual período do ano passado.

Cagnin ressalta que a maior importação de máquinas e equipamentos tanto mecânicos como elétricos refletem a demanda por produtos cada vez mais conectados à tecnologia digital e cuja evolução a produção doméstica tem mais dificuldade de acompanhar.

Na última década, lembra Cagnin, o Brasil chegou a experimentar redução de déficit comercial na balança da indústria de transformação, em razão do recuo das importações. No primeiro semestre de 2015 e 2016, mostram os dados do Iedi, o déficit da indústria caiu a US$ 3,72 bilhões e US$ 3,78 bilhões, respectivamente.

Já em 2019, porém, houve ampliação do déficit, em parte como reflexo da crise argentina.” O movimento, porém, não mudou o quadro que se desenha desde 2008 e 2009 na balança da indústria. “A crise profunda daquele período nos EUA e na Europa resultou num redirecionamento das exportações chinesas a outros mercados, incluindo o Brasil. Agora, com as decisões de política de comércio exterior nessas mesmas regiões, com medidas de defesa comercial contra a China, o mercado brasileiro volta a ser um destino maior dos produtos chineses.”

Embora o primeiro semestre tenha sido palco de uma forte desvalorização do câmbio doméstico, com alta de mais de 15% do dólar contra o real, o desempenho do fluxo cambial comercial voltou a se destacar. De janeiro a junho, o exportador brasileiro trouxe para o país o valor recorde de US$ 158,4 bilhões, o maior montante nominal para o primeiro semestre do ano desde 1982, quando teve início a série histórica do Banco Central sobre o câmbio contratado.

O descasamento entre o fluxo recorde de exportação a depreciação expressiva do real na primeira metade do ano pode ser explicada pela forte saída de dólares pela importação e pelo desempenho bastante negativo da conta financeira. No primeiro semestre, o fluxo cambial ficou positivo em US$ 11,63 bilhões, abaixo do resultado visto nos últimos anos no mesmo período. Além disso, o elevado prêmio de risco embutido no câmbio pela incerteza fiscal pesou contra o real.

“É comum vermos um fluxo do exportador mais forte no primeiro semestre por conta da sazonalidade das safras”. Apesar disso, ela lembra que houve um contraponto forte pelo lado das importações. “No primeiro semestre, os números de compras do exterior mostram um volume maior não só em um segmento, mas de forma disseminada, o que faz sentido se observarmos os rendimentos fortalecidos dos brasileiros, que estariam sustentando o consumo”.

Os dados do BC mostram que, de janeiro a junho, enquanto a entrada de recursos pela exportação bateu recorde, a saída pela importação teve seu segundo maior montante histórico, ao alcançar US$ 115,9 bilhões. “Um exemplo que ilustra como o consumo tem

ajudado a importação são as compras de pequeno valor, de até US$ 50. Antes da pandemia, o montante dessas aquisições rondava US$ 2 bilhões no acumulado em 12 meses e, agora, agora está em torno de US$ 10 bilhões”, afirma Damico.

A economista lembra, ainda, que a saída de criptoativos ajudou a ofuscar o saldo comercial, à medida que até junho a autoridade monetária considerava a compra dos ativos digitais como uma importação. “Mas agora, com a mudança das regras pelo BC, esse montante não deve mais pesar na conta comercial, mas, sim, na financeira”, diz.

“Vai continuar tendo efeito sobre o fluxo cambial. É um valor relevante, que, se seguir no ritmo atual, pode bater US$ 20 bilhões no acumulado de 2024.”

Outra fonte de saída de dólares do Brasil foi a conta financeira, que engloba tanto o dinheiro retirado da bolsa brasileira e da renda fixa, quanto recursos relativos a pagamento de streaming e apostas esportivas de plataformas on-line, as chamadas “bets”. “Essas rubricas estão em uma trajetória de crescimento e ajudam a deixar o fluxo positivo de dólar mais estreito”, de acordo com Damico. “Em relação a retirada de recursos da bolsa pelo estrangeiro, eu faria uma observação adicional: não é só o estrangeiro que tirou dinheiro daqui, mas também o local. De janeiro a maio, a retirada de dinheiro pelo brasileiro alcançou US$ 10,6 bilhões.”

Sobre a entrada de capital pela exportação, ainda que pareça contraditório, o ingresso robusto pode estar justamente relacionado à depreciação intensa e prolongada sofrida pelo real. Isso porque, diante de um dólar em nível mais elevado, o exportador enxerga uma janela para ampliar seus ganhos ao internalizar capital no país.

Dados da Buysidebrazil apontam que o montante deixado pelo exportador no exterior caiu no primeiro semestre deste ano, se comparado ao ano anterior. De janeiro a junho de 2023 a diferença entre o câmbio embarcado e o contratado era de US$ 20 bilhões, enquanto no mesmo período deste ano essa diferença ficou em US$ 9 bilhões.

“Mas é preciso olhar para esses números com alguma cautela”, diz Damico. “Até porque recentemente o BC mostrou que esse dinheiro deixado no exterior é utilizado para o pagamento de compromissos lá fora, e que é difícil imaginar que em algum momento ocorra uma internalização forte disso, que venha fortalecer o câmbio.”

No Relatório de Inflação de junho, o BC, ao comentar o hiato de câmbio (diferença entre o câmbio embarcado e o contratado), indicou que os recursos deixados no exterior estariam sendo usados para pagar obrigações em moeda estrangeira, como importações, serviços, amortizações de dívidas no exterior, distribuição de lucros e dividendos ou pagamento de juros. Assim, a autoridade afirmou que o comportamento recente desse diferencial “não sugere que os exportadores tenham acumulado no exterior montante tão significativo de recursos que seria potencialmente internalizado no futuro”.

“Por essa interpretação, podemos até pensar que esse colchão deixado no exterior, que perdeu gordura neste primeiro semestre do ano, pode voltar a crescer, o que limitaria ainda mais a entrada de dólares pelo exportador no próximo semestre”, diz Damico.

Vale notar, porém, que o aumento dos prêmios de risco nos ativos domésticos teve peso relevante na depreciação da taxa de câmbio na primeira metade do ano. “Esse movimento recente de desvalorização do câmbio foi resultado em boa parte do aumento da percepção de risco de inflação desancorada e da condução da política fiscal”, diz Bruno Martins, economista sênior do BTG Pactual.

“Quando cresce o risco, o investidor acaba exigindo um retorno maior para estar exposto ao país e à sua moeda. Exigir um retorno maior significa comprar essa moeda por um valor mais barato, então o câmbio acaba desvalorizando”, observa Martins. Ele diz, ainda, que ter uma balança comercial forte e favorável pode ter ajudado a conter a elevação do prêmio de risco. “Mas só isso não é suficiente”, diz.

A visão do BTG Pactual é a de que, caso o governo consiga convencer os investidores que irá respeitar o limite proposto pelo arcabouço fiscal, haverá uma descompressão no prêmio de risco, e o real deve se valorizar. “Se observarmos as últimas duas semanas, bastou uma promessa e um discurso mais preocupado com o tamanho do ajuste, para que se reduzisse bastante o risco. Mas ainda é pouco, vai precisar de algo mais concreto.”

E é justamente a descompressão do prêmio de risco que pode dar alento ao câmbio neste segundo semestre, explica o economista do BTG, já que o fluxo comercial tende a ser menos favorável e o financeiro mais desfavorável. “A meu ver, esse é o ‘call’. Não vai ser o fluxo o principal fator para a valorização do real, mas a retirada de prêmio.”

Há sinalizações de que o câmbio contratado comercial está em um momento de desaceleração. Dificilmente a conta financeira irá reverter o desempenho negativo no segundo semestre.

“O balanço comercial já é sazonalmente mais modesta no segundo semestre por conta da exportação, só que agora há toda a dinâmica de aumento de importação. Por isso, a conta comercial não vai conseguir salvar desta vez e resolver todos os nossos problemas de saída da conta financeira”. A Buysidebrazil projeta o dólar a R$ 5,40 no fim do ano.

Via Cidadania e Cultura

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