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30 ANOS DO PLANO REAL: O ALTO PREÇO DA ESTABILIDADE E O DESAFIO DO CRESCIMENTO

Remédio bom é remédio amargo, diz a sabedoria popular. No caso do Plano Real, foi o setor produtivo que amargou o dissabor da paridade cambial, uma das principais marcas do programa lançado pela equipe econômica de Fernando Henrique Cardoso, que, de maneira artificial, fez com que cada real valesse um dólar.

Por causa disso e da combinação com a elevação das taxas de juros, a década de 1990 foi marcada por uma forte crise do setor manufatureiro e queda nas exportações. O crescimento médio do Produto Interno Bruto (PIB) — a soma de tudo o que é produzido em bens e serviços — no período 1991-1999 foi de apenas 2,4% ao ano. Ali, segundo especialistas, o Brasil iniciou um processo de desindustrialização que perdura até os dias atuais. No caso das exportações, foram anos de sucessivos deficits na balança comercial, o que levou as transações em conta corrente a um saldo também negativo ao longo da década.

“O binômio formado por juros altos e câmbio valorizado trouxe efeitos muito severos para a indústria, especialmente para manufatura no Brasil. O país já padecia com chamado custo do Brasil, envolvendo uma série de problemas, como infraestrutura e sistema tributário. Acrescer a sobrevalorização cambial e a taxa de juros, prejudicou a competitividade da indústria nacional. A indústria foi para o chão”, comenta Armando Monteiro Neto, ex-presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (Mdic).

“É claro que não significa dizer que a gente é contra o Plano Real. Não poderíamos ser contra a estabilização e a economia de uma maneira geral. Nenhum país pode conviver com a inflação naqueles níveis anteriores ao real. Mas, o custo desses anos iniciais do processo de estabilização foi muito penoso”, ressalva Monteiro.

O economista Gesner Oliveira, secretário-adjunto de Política Econômica do Ministério da Fazenda à época da implantação da nova moeda, acrescenta que a indústria local foi afetada também pelo contexto internacional, de abertura comercial, com a redução tarifária entre os países. “Simultaneamente a essa sobrevalorização cambial, houve a liberalização tarifária, que estava ocorrendo no âmbito do Mercosul. A Tarifa Externa Comum (TAC) da união aduaneira foi criada naquele momento. Então, essa combinação da liberação tarifária, da sobrevalorização cambial e do custo do Brasil, prejudicou a indústria nacional”, comenta Gesner.

Ele recorda que havia a avaliação de que o dólar valendo menos favoreceria a política industrial, uma vez que as empresas poderiam renovar suas fábricas com novos equipamentos, já que estava mais barato importar os bens de capital. Monteiro, por sua vez, aponta que, com as indústrias paralisadas, baixa produtividade, não havia como comprar novos equipamentos. “O empresário comprava a máquina para produzir e o produto fabricado não tinha competitividade, isso desestimulava o investimento”, observa o industrial, ao destacar que as dificuldades perduram.

Otimista com aquilo que o atual ministro do Mdic Geraldo Alckmin batizou de “neoindustrialização”, Monteiro aponta a reforma tributária e o investimento em inovação e sustentabilidade como fatores que poderão impulsionar o setor daqui para a frente.

“Não há dúvida de que, nesse processo de relançamento ou de neoindustrialização, será necessário fazer um esforço na dupla agenda, que seria reduzir o custo Brasil e, nesse sentido, a indústria aposta muito na reforma tributária e, do outro lado, desenvolver competências e promover inovação para que a indústria possa aproveitar oportunidades que estão aí, como a da digitalização e da descarbonização.”

Balança desfavorável

O período marcado pela enxurrada de produtos estrangeiros no Brasil afetou em cheio a balança comercial brasileira. O maior símbolo da época eram as lojas de R$ 1,99 que se espalharam pelo país, mas não eram apenas as bugigangas que entravam com facilidade no Brasil. Produtos de alto valor, como automóveis, entravam facilmente.

O presidente-executivo da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto Castro, recorda que, antes disso, os produtos industrializados ocupavam quase 60% da pauta de exportações brasileiras, numa época em que o agro não tinha o mesmo peso de hoje. “O Brasil era um grande exportador de manufaturados como automóveis, autopeças e calçados. Naquele momento, o custo de exportar ficou muito mais elevado e as empresas desistiram das vendas. Até hoje não recuperamos o nível de exportações da época”, conta Castro, ao citar que, antes do Plano Real, o país estava à frente de países como China, México, Índia e Coreia no comércio exterior. “Todos esses países ultrapassaram o Brasil e, hoje, vendem muito mais”, observa.

“Compreende-se que, o grande objetivo na época era combater a hiperinflação. E a escolha foi controlar a inflação pelo câmbio. Com isso, as exportações foram sacrificadas”, acrescenta Castro, recordando que houve momento em que o real custou US$ 0,82.

Gesner Oliveira admite que o país tardou em mudar o regime cambial, o que só veio a ocorrer em 1999, com a flutuação do câmbio, ainda hoje vigente no país. “A flutuação deveria ter ocorrido logo na primeira fase do Plano Real”, comenta.

Abertura

Criador da lei antitruste brasileira, o economista menciona a angústia do então presidente Itamar Franco por não estar previsto na formatação do programa de estabilização, o controle de preços. “Itamar estava preocupado, principalmente, com o valor dos medicamentos. Mas, tabelar o preço teria sido muito contrário à filosofia do plano”, ele lembra. “A solução dada me pareceu engenhosa, que foi criar a lei de defesa da concorrência, muito necessária no momento em que se falava em privatização”, completa Gesner, em referência ao projeto de privatizações de setores como telecomunicações, energia e saneamento.

“Nesse sentido, tornou-se importante uma lei de controle do abuso do poder econômico. Então, com essa lei, o presidente Itamar teve o seu desejo de controlar os preços acolhido e, ao mesmo tempo, o país introduziu algo que era necessário naquele momento”, reforça o economista que, no governo seguinte, presidido por Fernando Henrique Cardoso, assumiu o posto de presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Naquele momento, o mundo vivia a fase da globalização, e o Brasil abria suas portas para empresas estrangeiras, inclusive nas pretensas privatizações.

Agronegócio

No início dos anos 2000, o Brasil foi favorecido pelo chamado “boom das commodities”. Antes disso, em 1999, para estancar o crescimento da dívida externa estratosférica, o governo FHC criou o regime de câmbio flutuante, em que o valor da moeda estrangeira no país é definido pelas forças do próprio mercado.

“As commodities ganharam peso na pauta de exportações, seja em volume seja em preço, e isso gerou um aumento nas receitas cambiais, que ajudou o Brasil a pagar a dívida externa e compor as reservas cambiais que estão aí até hoje. Tudo isso foi criado por conta do mercado externo, não houve uma decisão política interna do Brasil”, observa José Augusto Castro.

Com o boom das commodities e a consecutiva geração de superávits comerciais, o Brasil conseguiu expandir as reservas internacionais — atualmente em mais de US$ 356 bilhões — e espantou o fantasma do Fundo Monetário Internacional (FMI), com quem havia contraído altas dívidas, a partir dos anos 1980 e intensificadas nos anos do Plano Real.

Em 2023, o superavit comercial do agronegócio totalizou quase US$ 150 bilhões, enquanto em 1994, esse valor foi de apenas US$ 10,7 bilhões.

O coordenador do Núcleo Econômico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Renato Conchon, comenta que, no mercado interno, o Plano Real foi preponderante para o crescimento do agronegócio brasileiro, com reflexos positivos para a garantia da segurança alimentar no país. “Apenas para se ter uma ideia, em 1994, um salário-mínimo comprava o equivalente a uma cesta básica, agora em 2023, o salário-mínimo compra mais de 2 cestas básicas”, exemplifica Conchon.

“É claro que ao longo do período houve aumentos reais — acima da inflação — que impulsionaram o poder de compra dos brasileiros, mas a estabilidade da moeda propiciou um barateamento nos custos do setor que, por sua vez, aumentou a produção de alimentos no Brasil”, acrescenta o coordenador.

Em 1980, a produção total de grãos no país foi de 50 milhões de toneladas, com poucas variações ao longo da década. Em 1994 — ano da implementação da moeda — a produção subiu para 76 milhões de toneladas. Passados 30 anos, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) projeta uma safra em 2023/24, de 294 milhões de toneladas.

A mesma avaliação faz o vice-presidente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), Marcio Milan, segundo quem, com consumidores podendo planejar suas compras, as idas ao supermercado ficaram mais tranquilas.

Considerados os grandes vilões dos tempos de hiperinflação, com suas maquininhas de remarcar preço que mais pareciam armas, os supermercados viviam uma relação tensa com os consumidores e, por vezes, com os próprios governos. “Fomos muito pressionados pelos Governos para segurar preços. O setor era visto como um dos vilões da inflação; o culpado pela recessão econômica porque era no ambiente dos supermercados que o consumidor se deparava com o aumento de preços e com a perda real do poder de compra”, explica Milan.

Desde a criação do Plano Real, os supermercados expandiram a atuação no cenário econômico e hoje somam mais de 414 mil lojas em todo o país, com mais de 9 milhões de colaboradores. O setor também representa 9,2% do PIB e faturou 1 trilhão de reais em 2023, com suporte para atender aos 30 milhões de consumidores que entram nas lojas todos os dias. “O real, ao conseguir manter a inflação baixa, promover crescimento econômico e trazer um alívio para os empresários do setor, é, sem dúvida, um dos aspectos importantes desde a entrada da moeda em vigor”, conclui Milan.

No aniversário de 30 anos da moeda, o coordenador da CNA acredita que a grande reinvenção do agro, após a estabilidade trazida pelo real, é a sustentabilidade. O especialista explica que, com o cenário mais estável, o papel do setor é priorizar a produção de alimentos, fibras para tecidos e biocombustíveis. “Essa mudança de visão será o impulsionador da economia brasileira, tal como ocorreu em 1994”, comenta.

por CORREIO BRAZILIENSE

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